As dores acabam

As dores acabam
Por Hilda Lucas - Publicado em 13/04/2008


É incrível, mas um dia toda dor acaba. É como acordar sem febre depois de
noites de agonia. Você se pergunta distraída: Onde está a dor que eu deixei
aqui? Foi embora, de repente, sem ser notada, sem alarde.


Um dia você percebe que alguma coisa parou de doer. Um dia você entende que
não precisa mais daquela dor. Um dia você sente preguiça de sofrer e tem
vontade de alongar a alma, estende-la ao sol.


As dores acabam por que a vida é maior e mais teimosa.


Quando se está no olho do furacão, no fundo do abismo, velando um ente
amado, rolando na cama vazia, a dor parece eterna, presença maciça,
definitiva, que tudo ocupa e devasta. Ela fica ali, sentada no sofá,
servindo-se do jantar, pulsando na outra metade do leito, rondando sua
intimidade, compartilhando sua rotina. Lê seus livros, vai ao cinema com
você, amiga íntima, inseparável. Torna-se familiar, corriqueira. Essencial.
Reverenciada. A dor é um dublê que ocupa o lugar deixado pela sua alma
ferida, encolhida, retirada. Despojo de toda perda. Matéria feita de
ausências.


Quando se está em dor, a frase que mais se ouve é: Vai passar... Nada como
um dia após o outro ou então, O tempo cura tudo! Naquela hora, tudo soa
ridículo, leviano, estúpido. Dá vontade de gritar, numa espécie de
arrogância e vaidade às avessas: Você não conhece a minha dor. A minha dor
é a maior do mundo e nunca vai passar!


Cuidado! A dor é aderente. Não se apegue demais, não se deixe seduzir. As
sombras não protegem apenas escondem. Não se aprisiona a dor sem tornar-se
prisioneiro dela. A dor pode virar um vício. Uma grande justificativa. Uma
explicação respeitável. O inferno consentido. Um destino e não um caminho.
O tumor alimentado com diligência. O veneno tomado solenemente.


A dor que não é doença tem prazo de validade. Cumpre um ciclo. É percurso,
mal necessário, remédio amargo. Expurgo. Esconjuro. Depuração. Quando ela
acaba deixa um vazio, um descampado que será aos poucos inundado pela sua
alma alargada, reintegrada que se espalhará como maré alta e tudo
contemplará.

As grandes dores parecem inesgotáveis, insaciáveis. Mas mesmo as dores
indizíveis, aquelas das perdas impronunciáveis, as dores abissais que
contrariam as leis da vida, mesmo essas um dia passam. Param de fisgar, de
sangrar. Cansam, aquietam. Libertam-se de nós e viram cicatrizes, marcas,
tatuagens.


É comovente e belo trazer no corpo e na alma as marcas das dores bem
vividas. Nada mais natural que fazer as pazes com nossas dores. Deixá-las
partir sem medo. Lembrá-las sem sobressaltos. Reconhecê-las. Afinal, “nós
também somos o que perdemos”.

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